São Paulo, 01 de Agosto de 2013.
Preparando uma
apresentação sobre os 154 anos da Igreja Presbiteriana Brasil, deparei-me com a
seguinte frase na pág. 23 da Bíblia Sagrada – Edição Histórica, lançada na
comemoração do sesquicentenário da IPB, na seção que conta sobre os anos
recentes da igreja:
“A igreja sofre o impacto de novos movimentos que têm afetado o
protestantismo brasileiro, especialmente nas áreas doutrinária e litúrgica.
Muitos pastores e comunidades se sentem atraídos por conceitos e práticas
alheios à tradição reformada”.
Então percebi
que o problema que enfrentávamos em minha Congregação na equipe de louvor era
muito mais profundo do que “tradicionalismo” ou “modernismo”, nosso problema
era litúrgico-doutrinário. E este problema não era apenas nosso, mas um desafio
presente em toda a Igreja Presbiteriana do Brasil na atualidade. Em minha
opinião, a questão litúrgica da IPB
vai muito além do que já foi abordado na “Carta
Pastoral e Teológica sobre Liturgia da IPB”, que desenvolveu o assunto em
questão (palmas, aplausos, danças
litúrgicas e coreografia, teatro, participação de corais, oração de mulheres
durante o culto e salmodia exclusiva) com primor e didática para todos
entenderem as questões ali colocadas e suas consequências na vida da igreja. No
entanto é preciso tratar o básico da questão litúrgica da IPB, ensinar a todos o que é liturgia, o que
é o culto, especialmente aos jovens que fazem parte da equipe que auxilia na
condução do culto. Precisamos entender que liturgia é um serviço, nosso serviço
como comunidade. Portanto liturgia não é uma parte do culto, mas é o culto. Culto este que TODOS devem
prestar a Deus, não apenas os pastores ou os músicos, mas toda a assembleia ali
reunida. Precisamos entender que o culto público se distingue do culto que é a
nossa vida e do culto familiar. O culto em assembleia é diferente desses outros
cultos, sendo resultado desses. No culto público somos enviados ao mundo para
viver os outros dois, os quais nos levam de volta ao culto público. É um
sistema de culto cíclico, no qual vamos à assembleia responder a Deus com
louvor e adoração por tudo o que Ele tem feito por nós. Ao final deste, somos
enviados para viver de maneira que agrade a Deus sendo suas testemunhas (culto
pessoal, vida), e como ministros de nossos lares, ensinar nossa família a
adorar a Deus, especialmente os filhos (culto familiar).
Depois de
tomarmos essa breve consciência sobre o que é liturgia, precisamos dar o
próximo passo, os modelos litúrgicos. Na Bíblia não encontraremos nenhum, mas
encontramos nela os elementos de culto, a saber: oração, leitura da palavra, música e sacramentos. A partir destes
elementos básicos para que uma reunião seja considerada um culto público, os
cristãos desenvolveram modelos litúrgicos de adoração a Deus. Um dos mais
antigos é o que divide o serviço de culto em duas partes: A liturgia dos
catecúmenos e a liturgia dos fies. Na primeira há espaço para os seguintes
atos: acolhida, confissão, penitência/contrição, absolvição e exposição da
palavra, leitura de textos do Antigo e Novo Testamentos, com o objetivo de
mostrar a harmonia da Palavra de Deus. Entre esses atos litúrgicos há cânticos
apropriados. Depois, na chamada liturgia dos fiéis, há a ministração dos
sacramentos, principalmente a Ceia do Senhor, após esta o povo de Deus é
enviado a ser testemunha de Cristo na terra, vivendo para glorificar a Deus.
Esse modelo litúrgico permaneceu na Igreja Cristã por séculos, claro que elementos
estranhos foram adicionados, no entanto a estrutura básica do culto permaneceu
a mesma. Na reforma, os homens iluminados por Deus, ao longo do processo reformador,
foram retirando os elementos estranhos e retornando a um modelo simplificado
como o da Igreja Primitiva. É bem verdade que não deixaram para nós “o modelo
perfeito”, reconhecendo, como João Calvino, que precisávamos desenvolver esse
modelo, já que a época de suas vidas foram breves demais para tratar de todas
as demandas levantadas durante o século XVI. É verdade também que as várias
famílias protestantes tomaram rumos distintos quanto aos ritos de adoração. No
entanto a visão de ruptura com os modelos litúrgicos toma forma com a reforma,
primeiro com os adeptos da “reforma radical”, e depois com os separatistas da
Igreja da Inglaterra (batistas e congregacionais). Com os avivamentos ocorridos
nos EUA e o surgimento do pentecostalismo, chegamos ao estado de hoje, falando
de forma brevíssima. A idéia de informalidade, que está ligada à pós-modernidade,
e a ênfase nos sentimentos e na música, são alguns dos motivos que nos levaram
ao estado atual. A falta de ensino acerca da liturgia é o fator pelo qual
grupos tradicionais passaram a adotar práticas carismáticas e pentecostais em
seus serviços de culto, pois por mais que sejam atraentes, são distintos da
história litúrgica e da racionalidade e espiritualidade verídica presentes na
liturgia cristã. A ordem racional de chamar o homem ao arrependimento,
doutriná-lo através da palavra e chamá-lo a partilhar o Corpo de Cristo, sendo
dele testemunha na Terra, é abandonada no sistema de culto centralizado nas
emoções humanas. Neste culto antropocêntrico, nasce o “momento de louvor”, que se tornou o centro destas
celebrações. Os cânticos entoados já não levam mais em conta o momento em que
estão sendo entoados, mas vêm em bloco, como a “hora da alegria”. Muitas vezes
não há chamada ao arrependimento, e o tempo destinado à Palavra é diminuído.
Certo, me
estendi muito e nem todos estão nesta situação, mas só o fato da falta de
identidade cúltica numa igreja confessional é de nos deixar alerta. Algumas
coisas chamam a minha atenção além da falta de compreensão litúrgica e
doutrinária. O tal “momento de louvor” tomou conta de muitas congregações. Neste
momento não se dá muita atenção à temática do culto ou a sua progressão. Às
vezes se escolhem músicas por sua “musicalidade”, seu ritmo; alguns preferem
mesclar, ora as animadas, ora as mais tranquilas, ora as “espirituais” (não
deveriam ser todas?), ora os hinos tradicionais (dos quais se conhecem poucos,
e por isso são sempre os mesmos), etc. Além de ser uma incoerência com a
confessionalidade da igreja, é também uma incoerência bíblica, por não
valorizar os aspectos racionais e espirituais-verídicos do culto a Deus, e a
riqueza da música de adoração, na qual temos salmos, hinos e cânticos, dando-se
preferência a uma categoria e desvalorizando a outra. Como a questão musical se
tornou tão evidente nessa questão litúrgica da IPB, falarei agora deste
assunto.
Salmos – Enquanto há os que defendem a
salmodia exclusiva (baseando-se na tradição reformada/puritana de adoração), e
esforçam-se a traduzir ou metrificar um Saltério Brasileiro, a maioria dos
membros da IPB desconhece por completo o canto metrificado dos salmos, característica
das Igrejas Reformadas. De todos os 400 hinos de nosso Hinário Novo Cântico,
apenas DOIS, isso mesmo, 2 hinos são salmos genebrinos (Sl 5-122 e Sl 42-118),
além de 13 outros que são salmos metrificados ou baseados em salmos (Sl 1-175;
Sl 19-022; Sl 23-142/143/151; Sl 32-77; Sl 51-76; Sl 103-29; Sl 121-139; Sl
133-182; Sl 136-34; Sl 139-152; Sl 147.17-18-001). Não defendo a salmodia
exclusiva, pois ela também é incoerente com o Novo Testamento que menciona os
“hinos, salmos e cânticos espirituais”, no entanto defendo o canto metrificado
dos salmos durante o culto, pois na liturgia cristã tradicional, durante a liturgia da palavra, é lida uma passagem
do Antigo Testamento, após esta SE CANTA um salmo, depois se lê uma passagem do
Novo Testamento, que é chamada “segunda leitura”, já que salmos são músicas e devem ser CANTADOS. Depois dessa leitura é proclamado
o Evangelho, a palavra da salvação. A importância dos salmos cantados na igreja
é necessária, pois o livro de Salmos, o
Saltério, é antes de tudo o nosso padrão de hinário. Quando não cantamos os
salmos, estamos descaracterizando o Saltério Divino, que traz músicas em suas
páginas e não textos históricos, ou prosas ou profecias, mas poesias feitas
para serem cantadas. Na liturgia cristã
histórica há espaço para eles. No entanto é preciso haver um esforço
denominacional para produzir um saltério em português, que trouxesse melodias
genebrinas, características da tradição reformada e também brasileiras.
Hinos – Nosso tardio Hinário Novo
Cântico, que somente tomou forma em 1981, antes dele era comum o uso do Hinário
Salmos e Hinos, o primeiro hinário evangélico do Brasil e o Hinário Evangélico,
organizado pela extinta Confederação Evangélica do Brasil – CEB, que se tornou
o hinário oficial dos metodistas, principais entusiastas desse cancioneiro,
entre outros como o Cantor Cristão, etc.
A data tardia
da organização de nosso hinário explica por que ele é tão desconhecido por nós
mesmos. Mesmo em comunidades que cantam exclusivamente hinos, o HNC não é
utilizado em sua totalidade, pois isso requer que a igreja tenha um modelo
litúrgico o mais próximo da liturgia cristã tradicional e use o calendário
litúrgico, elemento bem raro entre os protestantes brasileiros, que explica a
falta de familiaridade com a liturgia cristã histórica e com festas importantes
da igreja, como a de Pentecostes e a da Ascensão. Assim, mesmo nas igrejas que
utilizam o hinário, são cantados basicamente os mesmos hinos e não todos os hinos. Nosso hinário traz
preciosidades cristãs como o hino n° 020, uma versão do Te Deum, o n° 005, o
Gloria Patri, o n° 006, a mais famosa melodia dos salmos metrificados de genebra
(porém não com a letra do salmo 134), melodia conhecida como “Old 100th”, entre
outros. Muitas das letras são antiquíssimas, algumas do século II e muitas
melodias são obras primas da música de toda a humanidade, tanto de compositores
internacionais como de nacionais. Além da falta de familiaridade com o HNC, há
a crescente rejeição por parte dos jovens dos hinos tradicionais, que
caracterizaram os protestantes desde os primórdios, pois devolveram ao povo o
papel de cantar durante os cultos a Deus. Essa rejeição por parte dos jovens se
dá pela entrada da música contemporânea na igreja, pelo “movimento gospel” e
alguns posicionamentos extremos por parte de alguns como “hinos só devem ser
tocados no piano”. Esses fatores têm levado os jovens cada vez mais longe do
HNC, restringindo o conhecimento deles ao “Hino da Mocidade”. Não se trata
apenas de conhecimento, mas nas reuniões e cultos realizados pelos jovens não
há a presença de hinos, exceto o hino já citado acima. A falta de doutrinação
nesse caso impede os jovens de reconhecerem a riqueza e confessionalidade do
HNC, pois se concentram apenas nas melodias atípicas ao nosso tempo, deixando
de lado sua utilidade e apropriação para cada ato litúrgico e data cristã que a
igreja deveria celebrar.
Cânticos Contemporâneos – Cada vez mais
presentes na liturgia das igrejas presbiterianas, os cânticos trazem boas e
péssimas contribuições aos cultos da IPB. Muitos deles, especialmente os
oriundos do “movimento gospel” trazem consigo conceitos e doutrinas estranhas
ao ensino bíblico e à fé reformada. Às vezes uma igreja ensina seus membros
corretamente durante a Escola Bíblica, sermão e estudos bíblicos, mas, muitas
vezes sem perceber, pela falta de conhecimento litúrgico, acabam cantando
coisas totalmente contrárias aos seus ensinamentos. A inclusão dos cânticos
contemporâneos na liturgia da IPB é válida desde que sejam adequados às
doutrinas da igreja. São bem-vindos, pois trazem novidade de todo o som que
Deus inspirou o homem a criar, no entanto precisam se enquadrar corretamente na
liturgia, que precisa ser mais concisa ao padrão reformado, rejeitando o
“momento de louvor” que a inclusão dos cânticos criaram e voltando ao padrão
racional da liturgia cristã (arrependimento, confissão, perdão, adoração,
doutrinação, comunhão, envio). Assim, todo cântico contemporâneo, com
discernimento e sabedoria, tem espaço na liturgia cristã histórica. Devem eles
se encaixar nos atos litúrgicos e não roubar a cena como o centro do culto.
Após tratar da
questão musical, falarei agora sobre o calendário litúrgico e o lecionário e a
ausência de um manual litúrgico como, por exemplo, o Livro Comum de Oração, da
tradição anglicana. Há é claro o Manual para o Culto Público, mas falta a ele
explicação doutrinária de cada ato litúrgico proposto. Precisamos de um
material altamente instrutivo, não apenas para os ministros, mas também para
seus ajudantes músicos e toda comunidade. Neste ponto é importante deixar claro
que os regionalismos devem ser respeitados e mantidos, no entanto um
“esqueleto” comum de liturgia poderia ser utilizado por todos. Pelo menos aos
que desejam uma orientação e não encontram um material denominacional
apropriado.
O Calendário Litúrgico –
Precioso manual de culto, leva a igreja a adorar a Deus pela vida de Cristo,
revivendo cada momento, tirando de cada etapa uma lição preciosa para o Corpo
de Jesus, a Igreja que é chamada a viver como Ele. Se bem utilizado produz vida
à Igreja, quando não, engessa o culto, como argumentam alguns. O problema não
está no calendário litúrgico, mas na falta de doutrina litúrgica quanto a seu
uso. Advento, Natal, Epifania, Transfiguração, Quaresma, Páscoa, Ascensão,
Pentecostes, Missão da Igreja e Segunda Vinda. Esses são os temas do calendário
cristão, uma forma de a Igreja contar os dias a partir da vida de Cristo, que
não vive sob as datas comemorativas desse tempo apenas, mas celebra e busca
viver como Jesus viveu. Cada domingo
reserva-nos uma lição preciosa, cada domingo avança para cada festa maior,
assim não nos deparamos com “nossa! Semana que vêm é páscoa!”, mas somos
levados a ela, preparando-nos para desfrutar de cada ensino. Durante o chamado
“Tempo Comum” (dividido entre o Natal
e a Quaresma e entre o Pentecostes e o Advento), o pastor tem maior liberdade para tratar de outros
assuntos relacionados à vida da igreja.
A falta de familiaridade dos protestantes brasileiros com o calendário
litúrgico é mais uma porta para que os ensinos e práticas estranhas à nossa
tradição reformada adentrem a igreja.
Lecionário – Um livro de
leituras bíblicas para cada domingo do calendário cristão que visa harmonizar a
Palavra de Deus, trazendo quatro passagens bíblicas que tratam do mesmo
assunto. Geralmente uma do AT, outra do NT, entre as duas um salmo ou cântico
bíblico para ser cantado e por fim uma passagem do Evangelho, que é a palavra
da salvação. O Lecionário, se não para guiar os sermões, deveria no mínimo ser
utilizado para doutrinar a igreja e direcionar a liturgia. É fundamental para a
escolha coerente do que deve ser cantado e quando. Utilizando-o é possível
conhecer o hinário por completo e também cantar os salmos durante o culto, bem
como adequar os cânticos aos atos e ocasiões propícias.
Manual de Culto – Um bom
Manual de Culto, que visasse a doutrinação litúrgica de toda a IPB, seria
fundamental para direcionarmos nossa denominação a um caminho mais confessional
e de acordo com a tradição reformada. Seria importante que esse manual
explicasse cada ato litúrgico proposto como num catecismo, e que mostrasse que
é possível mesclar hinos, cânticos contemporâneos e salmos, num modelo de culto
cristão histórico e atual, aplicável as várias realidades dos presbiterianos
brasileiros, respeitando os regionalismos e a tradição reformada. Creio que
este é um bom caminho para trabalhar esse desafio.
Preciosidades Perdidas – A
falta de familiaridade com esses elementos, fez com que os cultos protestantes
no Brasil perdessem preciosidades como a Oração
Dominical, feita por toda a igreja, e a profissão de Fé utilizando-se dos Credos Apostólico,
Niceno-Constantinopolitano e mais raramente, no domingo de Pentecostes, o
Atanasiano. Além dos salmos metrificados já citados nesta exposição.
Todo o assunto foi abordado de maneira breve, no entanto acredito que
para resolver a questão litúrgica da IPB é necessário um trabalho de
conscientização litúrgica e doutrinária acerca do culto, que ultrapasse a
questão das práticas, indo desde as raízes da liturgia até as práticas que
foram absorvidas dos carismáticos e pentecostais. Creio que deveria haver um
programa de rádio ou blog, canal no YouTube, etc. para tratar da liturgia
dominical, dando instruções àqueles que participarão da condução do culto. Dever-se-ia
investir na criação de materiais didáticos e profundos sobre a questão, que sirvam
para os leigos e oficiais, um trabalho que alcance os seminários e escolas
bíblicas e seja capaz de, ao menos, doutrinar-nos acerca desse tema, que pode parecer grego para muitos dos membros da
IPB.
William de Almeida
Santos,
Leigo, 21 anos,
estudante de Comunicação, professor de EBD numa Congregação Presbiteriana em
São Paulo.
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