sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A QUESTÃO LITÚRGICA DA IPB


São Paulo, 01 de Agosto de 2013.

Preparando uma apresentação sobre os 154 anos da Igreja Presbiteriana Brasil, deparei-me com a seguinte frase na pág. 23 da Bíblia Sagrada – Edição Histórica, lançada na comemoração do sesquicentenário da IPB, na seção que conta sobre os anos recentes da igreja:

“A igreja sofre o impacto de novos movimentos que têm afetado o protestantismo brasileiro, especialmente nas áreas doutrinária e litúrgica. Muitos pastores e comunidades se sentem atraídos por conceitos e práticas alheios à tradição reformada”.

Então percebi que o problema que enfrentávamos em minha Congregação na equipe de louvor era muito mais profundo do que “tradicionalismo” ou “modernismo”, nosso problema era litúrgico-doutrinário. E este problema não era apenas nosso, mas um desafio presente em toda a Igreja Presbiteriana do Brasil na atualidade. Em minha opinião, a questão litúrgica da IPB vai muito além do que já foi abordado na “Carta Pastoral e Teológica sobre Liturgia da IPB”, que desenvolveu o assunto em questão (palmas, aplausos, danças litúrgicas e coreografia, teatro, participação de corais, oração de mulheres durante o culto e salmodia exclusiva) com primor e didática para todos entenderem as questões ali colocadas e suas consequências na vida da igreja. No entanto é preciso tratar o básico da questão litúrgica da IPB, ensinar a todos o que é liturgia, o que é o culto, especialmente aos jovens que fazem parte da equipe que auxilia na condução do culto. Precisamos entender que liturgia é um serviço, nosso serviço como comunidade. Portanto liturgia não é uma parte do culto, mas é o culto. Culto este que TODOS devem prestar a Deus, não apenas os pastores ou os músicos, mas toda a assembleia ali reunida. Precisamos entender que o culto público se distingue do culto que é a nossa vida e do culto familiar. O culto em assembleia é diferente desses outros cultos, sendo resultado desses. No culto público somos enviados ao mundo para viver os outros dois, os quais nos levam de volta ao culto público. É um sistema de culto cíclico, no qual vamos à assembleia responder a Deus com louvor e adoração por tudo o que Ele tem feito por nós. Ao final deste, somos enviados para viver de maneira que agrade a Deus sendo suas testemunhas (culto pessoal, vida), e como ministros de nossos lares, ensinar nossa família a adorar a Deus, especialmente os filhos (culto familiar).
Depois de tomarmos essa breve consciência sobre o que é liturgia, precisamos dar o próximo passo, os modelos litúrgicos. Na Bíblia não encontraremos nenhum, mas encontramos nela os elementos de culto, a saber: oração, leitura da palavra, música e sacramentos. A partir destes elementos básicos para que uma reunião seja considerada um culto público, os cristãos desenvolveram modelos litúrgicos de adoração a Deus. Um dos mais antigos é o que divide o serviço de culto em duas partes: A liturgia dos catecúmenos e a liturgia dos fies. Na primeira há espaço para os seguintes atos: acolhida, confissão, penitência/contrição, absolvição e exposição da palavra, leitura de textos do Antigo e Novo Testamentos, com o objetivo de mostrar a harmonia da Palavra de Deus. Entre esses atos litúrgicos há cânticos apropriados. Depois, na chamada liturgia dos fiéis, há a ministração dos sacramentos, principalmente a Ceia do Senhor, após esta o povo de Deus é enviado a ser testemunha de Cristo na terra, vivendo para glorificar a Deus. Esse modelo litúrgico permaneceu na Igreja Cristã por séculos, claro que elementos estranhos foram adicionados, no entanto a estrutura básica do culto permaneceu a mesma. Na reforma, os homens iluminados por Deus, ao longo do processo reformador, foram retirando os elementos estranhos e retornando a um modelo simplificado como o da Igreja Primitiva. É bem verdade que não deixaram para nós “o modelo perfeito”, reconhecendo, como João Calvino, que precisávamos desenvolver esse modelo, já que a época de suas vidas foram breves demais para tratar de todas as demandas levantadas durante o século XVI. É verdade também que as várias famílias protestantes tomaram rumos distintos quanto aos ritos de adoração. No entanto a visão de ruptura com os modelos litúrgicos toma forma com a reforma, primeiro com os adeptos da “reforma radical”, e depois com os separatistas da Igreja da Inglaterra (batistas e congregacionais). Com os avivamentos ocorridos nos EUA e o surgimento do pentecostalismo, chegamos ao estado de hoje, falando de forma brevíssima. A idéia de informalidade, que está ligada à pós-modernidade, e a ênfase nos sentimentos e na música, são alguns dos motivos que nos levaram ao estado atual. A falta de ensino acerca da liturgia é o fator pelo qual grupos tradicionais passaram a adotar práticas carismáticas e pentecostais em seus serviços de culto, pois por mais que sejam atraentes, são distintos da história litúrgica e da racionalidade e espiritualidade verídica presentes na liturgia cristã. A ordem racional de chamar o homem ao arrependimento, doutriná-lo através da palavra e chamá-lo a partilhar o Corpo de Cristo, sendo dele testemunha na Terra, é abandonada no sistema de culto centralizado nas emoções humanas. Neste culto antropocêntrico, nasce o “momento de louvor”,               que se tornou o centro destas celebrações. Os cânticos entoados já não levam mais em conta o momento em que estão sendo entoados, mas vêm em bloco, como a “hora da alegria”. Muitas vezes não há chamada ao arrependimento, e o tempo destinado à Palavra é diminuído.
Certo, me estendi muito e nem todos estão nesta situação, mas só o fato da falta de identidade cúltica numa igreja confessional é de nos deixar alerta. Algumas coisas chamam a minha atenção além da falta de compreensão litúrgica e doutrinária. O tal “momento de louvor” tomou conta de muitas congregações. Neste momento não se dá muita atenção à temática do culto ou a sua progressão. Às vezes se escolhem músicas por sua “musicalidade”, seu ritmo; alguns preferem mesclar, ora as animadas, ora as mais tranquilas, ora as “espirituais” (não deveriam ser todas?), ora os hinos tradicionais (dos quais se conhecem poucos, e por isso são sempre os mesmos), etc. Além de ser uma incoerência com a confessionalidade da igreja, é também uma incoerência bíblica, por não valorizar os aspectos racionais e espirituais-verídicos do culto a Deus, e a riqueza da música de adoração, na qual temos salmos, hinos e cânticos, dando-se preferência a uma categoria e desvalorizando a outra. Como a questão musical se tornou tão evidente nessa questão litúrgica da IPB, falarei agora deste assunto.
Salmos – Enquanto há os que defendem a salmodia exclusiva (baseando-se na tradição reformada/puritana de adoração), e esforçam-se a traduzir ou metrificar um Saltério Brasileiro, a maioria dos membros da IPB desconhece por completo o canto metrificado dos salmos, característica das Igrejas Reformadas. De todos os 400 hinos de nosso Hinário Novo Cântico, apenas DOIS, isso mesmo, 2 hinos são salmos genebrinos (Sl 5-122 e Sl 42-118), além de 13 outros que são salmos metrificados ou baseados em salmos (Sl 1-175; Sl 19-022; Sl 23-142/143/151; Sl 32-77; Sl 51-76; Sl 103-29; Sl 121-139; Sl 133-182; Sl 136-34; Sl 139-152; Sl 147.17-18-001). Não defendo a salmodia exclusiva, pois ela também é incoerente com o Novo Testamento que menciona os “hinos, salmos e cânticos espirituais”, no entanto defendo o canto metrificado dos salmos durante o culto, pois na liturgia cristã tradicional, durante a liturgia da palavra, é lida uma passagem do Antigo Testamento, após esta SE CANTA um salmo, depois se lê uma passagem do Novo Testamento, que é chamada “segunda leitura”, já que salmos são músicas e devem ser CANTADOS. Depois dessa leitura é proclamado o Evangelho, a palavra da salvação. A importância dos salmos cantados na igreja é necessária, pois o livro de Salmos, o Saltério, é antes de tudo o nosso padrão de hinário. Quando não cantamos os salmos, estamos descaracterizando o Saltério Divino, que traz músicas em suas páginas e não textos históricos, ou prosas ou profecias, mas poesias feitas para serem cantadas. Na liturgia cristã histórica há espaço para eles. No entanto é preciso haver um esforço denominacional para produzir um saltério em português, que trouxesse melodias genebrinas, características da tradição reformada e também brasileiras.
Hinos – Nosso tardio Hinário Novo Cântico, que somente tomou forma em 1981, antes dele era comum o uso do Hinário Salmos e Hinos, o primeiro hinário evangélico do Brasil e o Hinário Evangélico, organizado pela extinta Confederação Evangélica do Brasil – CEB, que se tornou o hinário oficial dos metodistas, principais entusiastas desse cancioneiro, entre outros como o Cantor Cristão, etc.
A data tardia da organização de nosso hinário explica por que ele é tão desconhecido por nós mesmos. Mesmo em comunidades que cantam exclusivamente hinos, o HNC não é utilizado em sua totalidade, pois isso requer que a igreja tenha um modelo litúrgico o mais próximo da liturgia cristã tradicional e use o calendário litúrgico, elemento bem raro entre os protestantes brasileiros, que explica a falta de familiaridade com a liturgia cristã histórica e com festas importantes da igreja, como a de Pentecostes e a da Ascensão. Assim, mesmo nas igrejas que utilizam o hinário, são cantados basicamente os mesmos hinos e não todos os hinos. Nosso hinário traz preciosidades cristãs como o hino n° 020, uma versão do Te Deum, o n° 005, o Gloria Patri, o n° 006, a mais famosa melodia dos salmos metrificados de genebra (porém não com a letra do salmo 134), melodia conhecida como “Old 100th”, entre outros. Muitas das letras são antiquíssimas, algumas do século II e muitas melodias são obras primas da música de toda a humanidade, tanto de compositores internacionais como de nacionais. Além da falta de familiaridade com o HNC, há a crescente rejeição por parte dos jovens dos hinos tradicionais, que caracterizaram os protestantes desde os primórdios, pois devolveram ao povo o papel de cantar durante os cultos a Deus. Essa rejeição por parte dos jovens se dá pela entrada da música contemporânea na igreja, pelo “movimento gospel” e alguns posicionamentos extremos por parte de alguns como “hinos só devem ser tocados no piano”. Esses fatores têm levado os jovens cada vez mais longe do HNC, restringindo o conhecimento deles ao “Hino da Mocidade”. Não se trata apenas de conhecimento, mas nas reuniões e cultos realizados pelos jovens não há a presença de hinos, exceto o hino já citado acima. A falta de doutrinação nesse caso impede os jovens de reconhecerem a riqueza e confessionalidade do HNC, pois se concentram apenas nas melodias atípicas ao nosso tempo, deixando de lado sua utilidade e apropriação para cada ato litúrgico e data cristã que a igreja deveria celebrar.
Cânticos Contemporâneos – Cada vez mais presentes na liturgia das igrejas presbiterianas, os cânticos trazem boas e péssimas contribuições aos cultos da IPB. Muitos deles, especialmente os oriundos do “movimento gospel” trazem consigo conceitos e doutrinas estranhas ao ensino bíblico e à fé reformada. Às vezes uma igreja ensina seus membros corretamente durante a Escola Bíblica, sermão e estudos bíblicos, mas, muitas vezes sem perceber, pela falta de conhecimento litúrgico, acabam cantando coisas totalmente contrárias aos seus ensinamentos. A inclusão dos cânticos contemporâneos na liturgia da IPB é válida desde que sejam adequados às doutrinas da igreja. São bem-vindos, pois trazem novidade de todo o som que Deus inspirou o homem a criar, no entanto precisam se enquadrar corretamente na liturgia, que precisa ser mais concisa ao padrão reformado, rejeitando o “momento de louvor” que a inclusão dos cânticos criaram e voltando ao padrão racional da liturgia cristã (arrependimento, confissão, perdão, adoração, doutrinação, comunhão, envio). Assim, todo cântico contemporâneo, com discernimento e sabedoria, tem espaço na liturgia cristã histórica. Devem eles se encaixar nos atos litúrgicos e não roubar a cena como o centro do culto.
Após tratar da questão musical, falarei agora sobre o calendário litúrgico e o lecionário e a ausência de um manual litúrgico como, por exemplo, o Livro Comum de Oração, da tradição anglicana. Há é claro o Manual para o Culto Público, mas falta a ele explicação doutrinária de cada ato litúrgico proposto. Precisamos de um material altamente instrutivo, não apenas para os ministros, mas também para seus ajudantes músicos e toda comunidade. Neste ponto é importante deixar claro que os regionalismos devem ser respeitados e mantidos, no entanto um “esqueleto” comum de liturgia poderia ser utilizado por todos. Pelo menos aos que desejam uma orientação e não encontram um material denominacional apropriado.
O Calendário Litúrgico – Precioso manual de culto, leva a igreja a adorar a Deus pela vida de Cristo, revivendo cada momento, tirando de cada etapa uma lição preciosa para o Corpo de Jesus, a Igreja que é chamada a viver como Ele. Se bem utilizado produz vida à Igreja, quando não, engessa o culto, como argumentam alguns. O problema não está no calendário litúrgico, mas na falta de doutrina litúrgica quanto a seu uso. Advento, Natal, Epifania, Transfiguração, Quaresma, Páscoa, Ascensão, Pentecostes, Missão da Igreja e Segunda Vinda. Esses são os temas do calendário cristão, uma forma de a Igreja contar os dias a partir da vida de Cristo, que não vive sob as datas comemorativas desse tempo apenas, mas celebra e busca viver como Jesus viveu.  Cada domingo reserva-nos uma lição preciosa, cada domingo avança para cada festa maior, assim não nos deparamos com “nossa! Semana que vêm é páscoa!”, mas somos levados a ela, preparando-nos para desfrutar de cada ensino. Durante o chamado “Tempo Comum” (dividido entre o Natal e a Quaresma e entre o Pentecostes e o Advento), o pastor tem maior liberdade para tratar de outros assuntos relacionados à vida da igreja.
A falta de familiaridade dos protestantes brasileiros com o calendário litúrgico é mais uma porta para que os ensinos e práticas estranhas à nossa tradição reformada adentrem a igreja.
Lecionário – Um livro de leituras bíblicas para cada domingo do calendário cristão que visa harmonizar a Palavra de Deus, trazendo quatro passagens bíblicas que tratam do mesmo assunto. Geralmente uma do AT, outra do NT, entre as duas um salmo ou cântico bíblico para ser cantado e por fim uma passagem do Evangelho, que é a palavra da salvação. O Lecionário, se não para guiar os sermões, deveria no mínimo ser utilizado para doutrinar a igreja e direcionar a liturgia. É fundamental para a escolha coerente do que deve ser cantado e quando. Utilizando-o é possível conhecer o hinário por completo e também cantar os salmos durante o culto, bem como adequar os cânticos aos atos e ocasiões propícias.
Manual de Culto – Um bom Manual de Culto, que visasse a doutrinação litúrgica de toda a IPB, seria fundamental para direcionarmos nossa denominação a um caminho mais confessional e de acordo com a tradição reformada. Seria importante que esse manual explicasse cada ato litúrgico proposto como num catecismo, e que mostrasse que é possível mesclar hinos, cânticos contemporâneos e salmos, num modelo de culto cristão histórico e atual, aplicável as várias realidades dos presbiterianos brasileiros, respeitando os regionalismos e a tradição reformada. Creio que este é um bom caminho para trabalhar esse desafio.
Preciosidades Perdidas – A falta de familiaridade com esses elementos, fez com que os cultos protestantes no Brasil perdessem preciosidades como a Oração Dominical, feita por toda a igreja, e a profissão de Fé utilizando-se dos Credos Apostólico, Niceno-Constantinopolitano e mais raramente, no domingo de Pentecostes, o Atanasiano. Além dos salmos metrificados já citados nesta exposição.
Todo o assunto foi abordado de maneira breve, no entanto acredito que para resolver a questão litúrgica da IPB é necessário um trabalho de conscientização litúrgica e doutrinária acerca do culto, que ultrapasse a questão das práticas, indo desde as raízes da liturgia até as práticas que foram absorvidas dos carismáticos e pentecostais. Creio que deveria haver um programa de rádio ou blog, canal no YouTube, etc. para tratar da liturgia dominical, dando instruções àqueles que participarão da condução do culto. Dever-se-ia investir na criação de materiais didáticos e profundos sobre a questão, que sirvam para os leigos e oficiais, um trabalho que alcance os seminários e escolas bíblicas e seja capaz de, ao menos, doutrinar-nos acerca desse tema, que pode parecer grego para muitos dos membros da IPB.

William de Almeida Santos,

Leigo, 21 anos, estudante de Comunicação, professor de EBD numa Congregação Presbiteriana em São Paulo.

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